sábado, 29 de março de 2008

Comentários sobre artigo de Capozzoli na Scientific American Brasil


Faço alguns comentários sobre o texto de Ulisses Capozzoli publicado na Scientific American Brasil, edição especial n.19 que tem como título de capa: Como deter o aquecimento global: o que governos, empresas e cidadãos podem fazer".
Começo do começo, ou seja, pelo subtítulo do artigo (não sei como se chama isso no jargão jornalístico): "Investigações indicam que o aquecimento global por efeito estufa deve ter se iniciado na pré-história e se agravado com a Revolução Industrial, com reconhecimento recente".
Chamo a atenção para o trecho em negrito. Essa frase apaga a história da Terra e se vincula a um modo de pensar muito freqüente nos discursos sobre aquecimento global ou mudanças climáticas. Em primeiro lugar, o aquecimento global não é um fenômeno novo ou recente. Na história da Terra, ela já foi muito mais quente do que hoje, e também muito mais fria. A relação entre aquecimento global e efeito estufa ainda é um tanto polêmica em termos da história da Terra. Tem-se verificado sim que há uma certa correspondência na história entre aumento da temperatura global e aumento dos gases estufa na atmosfera. Mas isso, muito antes do homem surgir na Terra. Além disso, mesmo que haja uma relação entre os dois aumentos, há divergências se é o primeiro que causa o segundo ou o contrário.
No quinto parágrafo da reportagem há alguns problemas históricos de outra natureza: sobre história da ciência. O autor afirma que Arrhenius já "prevenia para as mudanças provocadas pela liberação crescente de gás". O problema está na palavra "prevenia". Na época dos trabalhos de Arrhenius, ou seja, em torno de 1896, em seus artigos originais, ele via o provável maior aquecimento da Terra que poderia ser supostamente provocado pelo aumento do CO2 atmosférico como algo bom, já que elevaria a temperatura do hemisfério Norte o que seria bom para os países daquele hemisfério. A palavra "prevenia" está associada a algo negativo, previne-se alguém contra um problema. Dificilmente Arrhenius naquela época via isso como um problema.
Também diz no mesmo parágrafo que o reconhecimento dos efeitos previstos por Arrhenius e Tyndall só aconteceu nos anos 70. Também isso não é verdade. A associação entre elevação da temperatura e CO2 como causa realmente foi muito controvertida na época de Arrhenius e vários cientistas importantes, entre eles Angstron, argumentavam que seus cálculos estavam errados, entre outros aspectos, porque suas medidas não conseguiam diferenciar o que era efeito do vapor d'água do que era efeito do CO2. E a relação ficou um tanto esquecida. Mas, no final da década de 40, Callendar já publicava artigos retomando a fórmula e a teoria de Arrhenius de que quanto mais CO2 na atmosfera maior seria a temperatura global do planeta. Os estudos de Callendar depois influenciaram os estudos de Revelle (citado no filme de Al Gore) e, deste os estudos de Kelling ainda no final dos anos 50.
Ou seja, as polêmicas sobre a relação entre CO2 e aquecimento não são realmente novas, mas foram mudando o tom ao longo das décadas. É provável que nas décadas de 60 e 70 quando os discursos ambientalistas talvez tenham começado a ganhar a mídia, essa relação polêmica tenha se incorporado a esse discurso na esteira de outros debates como o da camada de ozônio.
Pelo artigo, fica-se com a impressão de que a "compreensão da ameaça do dióxido de carbono" seja apenas científica e já tenha se iniciado desde o final do século XIX. A idéia de ameaça, no entanto, é bem mais nova do que as polêmicas tecnocientíficas em torno da relação CO2 / aquecimento. E, provavelmente, se trata de um evento discursivo que se dá num contexto em que vários discursos começam a se relacionar constitutivamente entre si, como o discurso científico sobre o tema, os discursos ambientalistas (mais "audíveis" e "dizíveis" a partir da década de 60), os discurso da mídia (que se torna um fenômeno de massa também por volta do final dos anos 50) e discursos políticos sobre o ambiente, que também têm maior eloquência a partir das mesmas décadas.
Há também no artigo pequenos equívocos conceituais, por exemplo, quando tenta explicar o efeito da precessão da Terra sobre o clima. Ele afirma que, por conta da precessão, as distâncias entre os hemisférios e o Sol variam. Na verdade, o problema não está na variação da distância, mas no fato de que, por conta da precessão, há variação sim da incidência de radiação solar por metro quadrado. (É um equívoco análogo ao comum problema de conceituação em relação às estações do ano como se estas fossem devido à mudança de distância Terra-Sol).
Há mais detalhes, mas fico por aqui.
Acho que o que é importante nisso tudo é pensar como jornalistas ouvem aqui, lêem ali e vão construindo seus textos assim, de pequenas orelhadas e leituras de soslaio e, assim, vão reafirmando (repetindo) efeitos de sentidos hegemônicos. A questão é como a ciência (seus "conteúdos" e sua imagem) entram nesse jogo.

3 comentários:

Pandora disse...

Acho que rolou uma pequena alfinetada nos jornalistas por uma prática que é comum a todo e qualquer ser-humano e, que, inclusive, acredito eu, seja o exato modo como as pessoas vão "aprendendo" ou se filiando ou construindo seus discursos sobre as coisas. Estas "leituras de orelhada" são também bastante comuns entre professores, pesquisadores e afins... sei que o jornalismo exige certo cuidado, mas, ninguém é perfeito... ehheheheh.

Henrique César da Silva disse...

Acho que a frase poderia ficar assim, então: "Acho que o que é importante nisso tudo é pensar como TODOS NÓS ouvimos aqui, lemos ali e vamos construindo nossos textos assim, de pequenas orelhadas e leituras de soslaio e, assim, vamos reafirmando (repetindo) efeitos de sentidos hegemônicos." Melhorou?
Mas acho que o jornalismo científico (e não só o científico) exige muito mais cuidado do que aquele com que tem sido produzido. Acho que o leitor que vai a uma banca, escolhe e compra uma revista como a Scientífic American, escolhe, dentro dela, ler um texto de um jornalista respeitado como o Capozzoli, editor da Scientific no Brasil, merece esse cuidado.

Anônimo disse...

Olá Prof.º Henrique

O sub-título que referiste nós chamamos de "olho" quando vem abaixo do título e de "linha fina" quando vai acima. Acho que no seu exemplo seria "olho", que serve para atrair os leitores em grande parte, além de complementar a informação do título.
Interessante que a pesquisa de Arhenius dizer que o aquecimento seria bom para os países do hemisfério norte. No ano passado eu assisti uma palestra sobre mudanças climáticas que o palestrante disse que a Europa já discutia como diminuir a emissão de CO2. Os Estados Unidos ainda estavam discutindo se o aquecimento global é verdadeiro. E no extremo oposto a Rússia (uma das grandes emissoras) não esboça preocupação com o tema, afinal, disse ele: imaginem todo aquele vasto território gelado se transformar em terras fertéis e agricultáveis? Fiquei impressionado com essa fala, pois nunca imaginava que o aquecimento global traria benefícios para alguns países.
Estou de acordo quanto ao último parágrafo e com o último comentário.
Abraços e parabéns pelo blog.